Inteiro Teor
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – PROCESSO CIVIL – ADMINISTRATIVO – PROCESSO LEGISLATIVO: QUÓRUM – OPERAÇÃO COM CRÉDITOS – TUTELA DE URGÊNCIA: REQUISITOS: PRESENÇA. 1. Se a lei orgânica municipal (LOM) estabelece a necessidade de quórum qualificado para aprovação de lei que cuide de empréstimo, operações de crédito e outros, mas o negócio jurídico realizado como ente estadual caracteriza-se como mera cessão onerosa de crédito, autorizadora na Lei estadual nº 23.422/2019, para regularizar o repasse aos entes municipais, não há indícios de que violado o devido processo legislativo. 2. Presentes os requisitos para a concessão liminar da tutela de urgência, defere-se a pretensão recursal.
AGRAVO DE INSTRUMENTO-CV Nº 1.0000.20.026345-7/001 – COMARCA DE SALINAS – AGRAVANTE (S): FAZENDA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DE SALINAS – AGRAVADO (A)(S): CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ DE SALINAS, VILMAR LIMA DA SILVA
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DAR PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.
DES. OLIVEIRA FIRMO
RELATOR.
DES. OLIVEIRA FIRMO (RELATOR)
V O T O
I – RELATÓRIO
Trata-se de AGRAVO DE INSTRUMENTO interposto pela FAZENDA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DE SALINAS/MG em face de decisão (doc. 3 e 20/TJ) que, proferida em AÇÃO ORDINÁRIA DECLARATÓRIA movida contra a CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ DE SALINAS/MG, indeferiu medida de concessão liminar em tutela de urgência pela qual buscava “declarara aprovado o Projeto de Lei nº 013/2019 possibilitando que a chefe do Poder Executivo, caso queira, deflagre o procedimento administrativo para operações de venda definitiva de patrimônio público.”
A agravante alega, em síntese, que: a) – equivocado o ato decisório, pois interpretou a cessão onerosa como se fosse empréstimo, analisando-o sob a ótica da geração de receitas e de despesas, não havendo que se falar nessas últimas; b) – uma vez realizada a cessão onerosa de créditos, não haverá qualquer despesa futura de responsabilidade municipal, recaindo toda a responsabilidade sobre o Estado (art. 1º, § 5º, da Lei estadual nº 23.422/2019); c) – cedido o crédito não haverá necessidade de qualquer contraprestação pelo ente municipal; d) – a própria Lei estadual nº 23.422/2019 distinguiu a cessão onerosa das operações de crédito (artigos 6º e 7º), afastada a segunda daquele critério adotado pelo art. 29, III, da Lei Complementar (LC) nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF); e) – desnecessário o quórum de 2/3 (dois terços) para aprovação da lei, pois a Lei Orgânica Municipal (LOM) não o impõe para a alienação de patrimônio, não se cuidando aqui de nenhuma das hipóteses do art. 299 daquela LOM; f) – patentes os requisitos para a concessão liminar, seja pela probabilidade do direito seja pelos benefícios imediatos decorrentes do ingresso de recursos nos cofres públicos. Pede, desde a antecipação da tutela recursal e ao final, seja provido o recurso para reforma da decisão impugnada (doc. 1/TJ). Junta documentos (doc. 2-22/TJ).
Preparo: parte isenta (art. 10, I, da Lei estadual nº 14.939/2003 c/c art. 1.007, § 1º, do CPC/2015).
Juízo de admissibilidade do recurso e do processamento como agravo de instrumento; deferido em parte o efeito ativo da tutela recursal (doc. 23/TJ).
Informações do juízo pela retratação negativa e pelo cumprimento do art. 1.018, do CPC/2015, pelo agravante (doc. 27/TJ).
Contraminuta da CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ DE SALINAS/MG pela manutenção da decisão combatida, pois a aprovação do projeto de lei (PL) depende de quórum qualificado por envolver operação de crédito, assim conceituada no art. 38 da LRF (doc. 29-31/TJ).
Contraminuta de VILMAR LIMA DA SILVA, em preliminar, por sua ilegitimidade passiva e, no mérito, pela manutenção da decisão combatida (doc. 32-33/TJ).
A Procuradoria-Geral de Justiça opina pelo não provimento do recurso (doc. 37/TJ).
É o relatório.
II – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE
Vistos os pressupostos de admissibilidade, conheço do AGRAVO DE INSTRUMENTO.
III – PRELIMINAR
Dada vênia, parece-me impertinente a preliminar aventada em contraminuta sobre a ilegitimidade passiva do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz de Salinas/MG, VILMAR LIMA DA SILVA, porquanto imputado a ele, pessoalmente, a prática então questionada, de rejeição do PL pela suposta necessidade de quórum qualificado para aprovação, embora não haja pedido específico de alguma condenação dirigida contra ele, senão quanto aos efeitos declaratórios pleiteados para “D.1 – declarar ilegal a sua (sic) reprovação do Projeto de Lei Municipal nº.: 013/2019, porque obteve a maioria simples dos vereadores votantes; D.2 – declarado aprovado o Projeto de Lei nº.: 013/2019, autorizando-se assim a SANÇÃO do Projeto de Lei nº.: 010/2019”. Aqui, então, trata-se de legitimidade extraordinária, pela atuação específica do agente público, ao qual, porém, devem se estender as garantias processuais da Fazenda Pública. Tanto parece ser verdade, que ele veio patrocinado nos autos pela Procuradoria daquele órgão.
Todavia, considerando que o tema não foi objeto da decisão combatida, nem passou por avaliação prévia na origem, entendo que descabe a esse colegiado, no presente momento e na presente via, aprofundar no exame da tese, sob pena de indevida supressão de instância, motivo por que, apesar da atual manifestação, provisória, o debate não restará precluso.
IV – MÉRITO
Conforme me manifestei por ocasião da apreciação do pedido liminar, cinge-se a controvérsia a avaliar se a cessão de crédito pretendida pelo ente municipal por meio do Projeto de Lei (PL) nº 13/2019 enquadra-se ou não no conceito de operação de crédito e, por conseguinte, exige quórum qualificado de 2/3 (dois terços) para que seja aprovado pela Câmara Municipal.
IV – a)
De pronto, registra-se que a LOM prevê, em seu art. 299, as matérias que dependem de quórum qualificado para aprovação, in verbis:
Art. 299. Só pelo voto de ? (dois terços) de seus membros, pode a Câmara Municipal:
I – conceder isenção fiscal e subvenções para entidades de serviços de interesse público;
II – decretar a perda do mandato do Prefeito ou do Vice-Prefeito;
III – cassar mandato do Prefeito e do Vereador, por motivo de infração político-administrativa;
IV – perdoar dívida ativa, nos casos de calamidade, de comprovada pobreza do contribuinte e de instituições legalmente reconhecidas como de utilidade pública;
V – aprovar empréstimos, operações de crédito e acordos externos, de qualquer natureza, dependendo de autorização do Senado Federal, além de outras matérias fixadas em Lei Complementar Estadual;
VI – rejeitar o parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas sobre as contas que o Prefeito deve apresentar anualmente;
VII – Rejeitar veto a proposição de lei;
VIII – modificar a denominação de logradouros públicos com mais de 10 (dez) anos, na forma da Lei Complementar Estadual;
IX – decretar a perda do mandato do Vereador, por procedimento atentatório às instituições.
X – aprovar emendas à Lei Orgânica;
XI – aprovar regimento interno e suas alterações;
XII – destituir membros da Mesa Diretora; (negrejei)
No que interessa particularmente ao caso, destaca-se a previsão do inciso V.
A exigência é reforçada no art. 300 da LOM, que também determina, in verbis:
Art. 300. Só pelo voto da maioria absoluta dos membros pode a Câmara Municipal:
I – aprovar Leis Complementares que disponham sobre:
a) Código Tributário do Município;
b) Código de Obras e Edificações
c) Código de Posturas e outros Códigos;
d) Estatuto dos Servidores Municipais;
e) Plano Diretor, Zoneamento e Parcelamento de solo urbano;
f) Organização e estrutura administrativa dos serviços públicos;
g) Criação, estruturação e atribuições das Secretarias, Subprefeituras, Conselhos Municipais e órgãos da administração pública;
II – Aprovar legislação para:
a) concessão de serviço público;
b) concessão de pensão especial;
c) criação, organização e supressão de distritos e subdistrito, e divisão do território do Município em áreas administrativas;
d) obtenção de empréstimos, inclusive para as autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público;
e) realização de operações de crédito, abertura de créditos adicionais, suplementares ou especiais;
f) Alteração de denominação de prédios, vias e logradouros públicos;
III – fixar os subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito, Secretários Municipais e Vereadores;
IV – convocar reunião secreta;
V – renovar, na mesma sessão legislativa, Projeto de Lei não aprovado;
VI – convocar os Secretários Municipais;
VII – proceder à eleição dos membros da Mesa, em 1o escrutínio;
VIII – conceder título de cidadão honorário, qualquer outra honraria ou homenagem. (negrejei)
Assim, por disposição legal expressa, impõe-se a aprovação de lei por quórum qualificado toda vez que se tratar de operações de crédito dentre aqueles elencados.
IV – b)
Note-se, a seu turno, que o conceito de operações de crédito previsto no art. 29, III, da LRF(1) é amplo, abrangendo algumas (operações) que nem sequer são tratadas pelo sistema financeiro, merecendo destaque o esclarecimento quanto ao tema feito pela Secretaria do Tesouro Nacional, vinculado ao Ministério da Economia:
As operações de crédito dos Entes públicos dividem-se, com base na Lei nº 4.320/1964, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na Resolução do Senado Federal nº 43/2001, em operações que integram a dívida flutuante, como por exemplo as operações por Antecipação de Receita Orçamentária (ARO), e operações que compõem a dívida fundada ou consolidada.
A operação de crédito por ARO destina-se a atender insuficiência de caixa durante o exercício financeiro, e deverá ser liquidada, com juros e outros encargos incidentes, até o dia dez de dezembro de cada ano.
As demais operações de crédito destinam-se a cobrir desequilíbrio orçamentário ou a financiar obras, mediante contratos ou emissão de títulos da dívida pública. A operação é denominada operação de crédito interno quando contratada com credores situados no País e operação de crédito externo quando contratada com agências de países estrangeiros, organismos internacionais ou instituições financeiras estrangeiras. As operações de reestruturação e recomposição do principal de dívidas têm enquadramento especial quando significarem a troca de dívida (efeito permutativo) com base em encargos mais favoráveis ao Ente.
O conceito de operação de crédito da LRF é bastante amplo. Dessa maneira, há operações que eventualmente podem não ser caracterizadas como operações de crédito pelo sistema financeiro, mas se enquadram no conceito da LRF, devendo, portanto, ser objeto de verificação prévia pelo Ministério da Economia.
As operações de crédito tradicionais são aquelas relativas aos contratos de financiamento, empréstimo ou mútuo. A legislação englobou no mesmo conceito, ainda, as operações assemelhadas, tais como a compra financiada de bens ou serviços, o arrendamento mercantil e as operações de derivativos financeiros, inclusive operações dessas categorias realizadas com instituição não financeira.
Adicionalmente, há operações que, apesar de não se constituírem operações de crédito em sentido estrito, foram equiparadas àquelas por força da legislação, por representarem compromissos financeiros e terem sido consideradas relevantes pelo legislador. O § 1º do art. 29 da LRF dispõe que se equipara a operação de crédito a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo ente da Federação. Adicionalmente, o § 1º do art. 3º da RSF nº 43/2001 estabelece as seguintes equiparações a operação de crédito: a) recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação; b) assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de títulos de crédito; c) assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.(2) (negrejei)
Assim, por aparentemente nem enquadrada nas hipóteses ampliativas, fica a impressão de que a operação em debate não se amolda a operação de crédito, embora seja uma operação sobre créditos.
IV – c)
Indo além, salienta-se que a cessão de crédito está prevista nos artigos 286 e seguintes do Código Civil (CC), tratada como forma de transmissão de obrigações, nisso, portanto, e a priori, não se enquadrando no conceito de operação financeira stricto sensu.
Por meio dela o credor – no “caso concreto” a municipalidade – pode transferir o direito de crédito a terceiro – quem quer que seja – tornando-se esse credor em lugar daquele. E, também por determinação legal, o cedente não responde pela solvência do devedor (exceto estipulação em contrário), responsabilizando-se tão somente, nos casos de cessão onerosa, pela existência do crédito ao tempo da cessão.
Nesse contexto, parece-me, então, equivocado o ato decisório, porquanto se bastou de modo simplista a avaliar relação de receita e despesa. Ademais, dada vênia, o fato de haver eventual deságio não descaracteriza a cessão, nem a qualifica, por si só, como operação financeira.
Seguindo, verifica-se que a Lei estadual nº 23.422/2019 veio autorizar os entes municipais “a ceder direitos creditórios” e “realizar operações de crédito” para o fim de restruturação de finanças em virtude do atraso de transferência obrigatórias pelo ente estadual. Nessa situação, portanto, o Estado será sempre o devedor, pois somente os créditos titularizados pelo MUNICÍPIO contra o Estado dentre aqueles decorrentes de atrasos de transferências obrigatórias (também conceituados na lei) poderão ser transferidos.
E o próprio art. 1º, § 8º, da Lei estadual já destacou:
§ 8º As cessões de direitos creditórios realizadas nos termos deste artigo não se enquadram nas definições de que tratam os incisos III e IV do caput do art. 29 e o art. 37 da Lei Complementar Federal nº 101, de 4 de maio de 2000, sendo consideradas operações de venda definitiva de patrimônio público.
Além, parece-me que não há risco de prejuízo a gestões futuras, pois a norma estadual limita o uso do instituto (da cessão) “ao estoque de créditos existentes até a data de publicação da lei municipal que autorizar a operação” (§ 10). Outrossim, existem mais restrições na lei estadual, dentre elas a necessidade de escolha de um ou outro meio (cessão ou operação de crédito), de modo excludente.
Por todas essas razões, fica aparente o equívoco daquele ato administrativo que considerou necessário quórum qualificado de 2/3 (dois terços) para aprovação do projeto de lei municipal (nº 13/2019), esse o motivo determinante do apontado ato, conforme ata de reunião daquela Casa Legislativa (doc. 17/TJ).
O risco de dano, igualmente, decorre da indisponibilidade dos valores em favor dos cofres municipais e da possibilidade de maior oneração ao ente estadual, decorrente da inclusão de novos créditos até a edição da norma municipal, isso que previsto na Lei estadual nº 23.422/2019.
A hipótese, no entanto, não será de declarar-se aprovado ou não o Projeto, mas apenas de reconhecer-se o apontado equívoco na interpretação da LOM, determinando se corrija o ato.
Alfim, reitero que a medida não tem caráter satisfativo, nem traz risco de irreversibilidade, porquanto se ao cabo, quando do julgamento de mérito da ação, sobrevier entendimento outro, possível o desfazimento dos atos praticados com base na norma por eventual sancionada com fulcro em decisão judicial liminar, naturalmente de caráter provisório.
Por tudo, e sem prejuízo de que os fatos sejam mais bem apurados em cognição exauriente, no curso do devido processo legal, com garantia do contraditório e da ampla defesa, entendo que a decisão agravada carece de reparos.
V – CONCLUSÃO
POSTO ISSO, DOU PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO, para deferir em parte a tutela de urgência e, por conseguinte, afastar o óbice oposto quanto ao quórum qualificado para aprovação do PL nº 13/2019, devendo o Poder Legislativo local corrigir o ato consoante essa decisão.
Pela sucumbência mínima, custas integralmente pelos agravados: isentos (art. 10, I, da Lei estadual nº 14.939/2003).
É o voto.
DES. WILSON BENEVIDES – De acordo com o (a) Relator (a).
DESA. ALICE BIRCHAL – De acordo com o (a) Relator (a).
SÚMULA: “DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO”
1 – Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:
III – operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros; (…).
2 – https://conteudo.tesouro.gov.br/manuais/index.php?option=com_content&view =article&id=22&catid=63&Itemid=274
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