AS INTERPRETAÇÕES E POLÊMICAS QUE CERCAM A PRÁTICA DE LOCAÇÃO POR APLICATIVOS EM CONDOMÍNIOS

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Há algum tempo passou-se a discutir se a prática de locação/hospedagem por aplicativos enquadra-se na Lei de Locações (Lei 8245/91) ou na Lei de Hospedagem (Lei 11771/08).

O assunto está em evidência em razão da potencialização da movimentação e rotatividade de pessoas estranhas dentro dos condomínios, mormente naqueles cuja localização não eram alvos da locação por temporada, e alguns moradores, em decorrência disso, têm colocado óbices a esta prática em condomínios puramente residenciais.

Dessa forma, é muito importante entendermos algumas questões pontuais das duas legislações que tem sido regularmente citada por especialistas na área condominial, por doutrinadores, juízes, desembargadores e agora mais recentemente por Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Locação ou Hospedagem? Lei de Locações

Aqueles que defendem a prática de aproximação entre proprietários de imóveis e consumidores como sendo Locação para Temporada, baseiam-se no artigo 48, da Lei de Locações – Lei 8245/91, que diz, na íntegra:

Art. 48. Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel. 

Para os que se filiam a esta tese, parece bastante simples enquadrar tal prática de aproximação que os aplicativos exercem como sendo uma locação por temporada nos moldes do artigo 48.

Por que parece simples? Porque para estes, todos os requisitos da locação por temporada estão subsumidos em detalhes na lei. Vejamos.

Prazo 

O artigo 48 dispõe sobre o ânimo que o locatário tem de residir temporariamente num determinado local, desde que a sua permanência não seja superior a 90 (noventa) dias. Ou seja, tal locação poderá ser de no mínimo 1 (um) dia e no máximo de 90 (noventa) dias.

Finalidade da locação 

Para qual finalidade o locatário poderá efetuar tal locação? O artigo cita algumas condições exemplificativas, mas não é exaustivo quanto a outras possibilidades. Assim, se o locatário optar por locar um imóvel – seja dentro ou fora de condomínio residencial (e em qualquer localização de determinada cidade) por apenas 1 (um) dia com o intuito de assistir a uma partida de futebol na cidade de São Paulo; por 10 (dez) dias para fazer um curso em Campinas, Estado de São Paulo; por 30 (trinta) dias para se submeter a um tratamento de saúde no Hospital das Clínicas da cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, ou ainda por 90 (noventa) dias até que tenha sido finalizada a reforma de seu imóvel, ambos – Locador e Locatário – estarão totalmente amparados pela Lei 8245/91.

Imobiliárias virtuais e tecnologias modernas de aproximação 

O que é importante ressaltar neste caso, é que no ano de 1991, ocasião da entrada em vigor da Lei de Locações, não havia meios de aproximação tão modernos quanto os de hoje, e, como consequência, os locais turísticos para práticas de lazer eram os mais procurados, como as cidades históricas, litorâneas e termais. Não obstante a isto, a Lei nunca proibiu que outras formas de locação pudessem ocorrer em outras localidades, como exemplificamos acima. A Lei não recepcionou a geografia como fator delimitador da sua aplicação ou abrangência. Também não restringiu a forma de aproximação entre locadores e locatários a imobiliárias com escritórios físicos ou a anúncios de jornais impressos. O advento da internet propiciou que vários meios de aproximação e contratação eletrônicos surgissem em suas mais variadas formas, inclusive e atualmente através de anúncios em plataformas digitais, como as que se discutem hoje, sem falarmos do avanço da tecnologia blockchain, que promete revolucionar vários mercados – inclusive o imobiliário, trazendo maior segurança para as operações.

Pelos motivos acima é que muitos defendem com propriedade que tal prática (de aproximação entre proprietário e consumidor) se enquadra na Locação para Temporada, da Lei 8245/91 e não em hospedagem.

Lei de Hospedagem 

Já pelo lado da tese de que essa prática se configura em Hospedagem e não em Locação, insurgem-se os defensores dela alegando a aplicabilidade dos artigos 23 e seguintes da Lei de Hospedagem.

Diz o artigo 23, da Lei 11771/08:

Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária. 

Numa leitura rápida e sem muita cautela, pode parecer que a redação é praticamente a mesma da disposta no artigo 48, supra, da Lei de Locações, visto que fala sobre alojamento temporário, de uso exclusivo do hóspede, com cobrança diária.

E são esses pontos, somados à possibilidade de se oferecer serviços ao consumidor, é que fazem com que alguns defendam a tese da hospedagem e não locação.

Uma outra justificação que compõe a crença de que a prática de aproximação por aplicativos se assemelha a hospedagem é a alegação de que, em se caracterizando hospedagem, há a mudança de destinação das áreas comuns e privativas dos condomínios puramente residenciais.

Diante dessa celeuma e da aparente confusão gerada pela prática de aproximação provocada pela tecnologia, muitos juízes têm entendido e decidido de forma diversa em seus julgamentos, sendo que a opção de alguns pela hospedagem afasta completamente tal prática dos condomínios puramente residenciais.

Julgamentos do STJ e desvios da finalidade residencial 

Recentemente, houve dois processos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. Um deles, originário do Rio Grande do Sul, chegou ao mencionado Tribunal e ganhou destaque em todo o país. No fim, o relator do processo, o Ministro Luís Felipe Salomão foi vencido pelos seus pares em sua tese de que a locação por aplicativos não desvirtuaria a finalidade residencial dos condomínios. Segundo os demais ministros, esse tipo de locação configura-se uma locação atípica e passível de ser regulada em convenção condominial posto que desvirtua a finalidade residencial de um imóvel de condomínio.

O meu posicionamento se coaduna com o do Ministro Salomão, e é importante esse entendimento, visto que muitos juízes, em suas sentenças, também alegam que há tal desvio de finalidade. Mas, o que me parece equivocado nessas decisões de primeiro, segundo e até de terceiro grau é o fato de entenderem que as formas modernas de aproximação, como dos aplicativos, por si só desvirtuam a finalidade residencial dos imóveis.

Ora, o que fizeram os aplicativos senão apenas e tão somente fomentar e potencializar tal aproximação entre Locador e Locatário? A confusão, na minha compreensão, reside no entendimento do que distingue a alteração da finalidade de um residencial para comercial. Parece claro, sob o ponto de vista objetivo, que a mudança de destinação de uma unidade ou das áreas comuns se dá não pelo aumento do fluxo ou pela maior rotatividade de pessoas dentro dos condomínios, mas sim, se houvesse a prática de atividade comercial pelo Locador ou pelo Locatário.

Neste caso, se o Locatário passasse a desenvolver atividades comerciais dentro da sua unidade, como por exemplo, por abrir um consultório de psicologia e receber pacientes em seu apartamento, isso configuraria, obviamente, desvio de finalidade.

Ainda, se o próprio condomínio oferecesse serviços de manobrista, de concierge, de recepção, de arrumação e até de serviços de café-da-manhã e outras refeições, certamente ficaria clara a alteração da finalidade daquele condomínio.

Mas, sabemos que não é assim. Mesmo que os porteiros, quando muito, ficam com a guarda das chaves do proprietário para entregar ao inquilino, isto, por si só, não configura a prestação de serviços de que trata o artigo 23 da Lei de Hospedagem, posto que quem oferece os demais serviços, inclusive de arrumação (quando existe) é o proprietário da unidade, com seus recursos próprios.

Diante disso, reforço a minha tese de que não há que se falar em hospedagem porquanto não há nenhum desvio de finalidade em decorrência da simples prática de aproximação entre Locador e Locatário por meio de ferramentas modernas, como os aplicativos do tipo Airbnb, Booking, Alugue por Temporada etc.

Alteração da convenção de condomínio 

Uma outra questão levantada em algumas decisões judiciais seria a possibilidade de alteração da convenção para proibir as locações que se originarem de aplicativos.

Esta também não parece ser a melhor solução e, s.m.j., é abusiva e ilegal, uma vez que que nenhuma disposição convencional pode contrariar preceito de Leis Federais, a não ser que por ela tenha sido dada a opção, como é o caso emblemático do artigo 1336, do Código Civil.

Neste ponto temos duas Leis Federais tratando do caso – a Lei de Locações e o Código Civil, sem falar na nossa Lei maior, a Constituição Federal (Art. 5º, caput).

Então, pra ficar apenas na Lei Especial (Art. 48, da Lei 8.245/91) que se sobrepõe à convenção, e a Lei Federal 10.406/02 (Código Civil), arts. 1228 e 1335, não há possibilidade alguma de a convenção afastar o direito de ‘fruir’ do condômino, que é um dos quatro elementos do direito fundamental de propriedade.

E a função social da propriedade? 

Alguns dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em seus votos, buscaram argumentos na relativização do direito de propriedade, bem como na função social da propriedade, para justificar que a alta rotatividade – que é própria da locação para temporada – descaracteriza a finalidade residencial do condomínio, e, portanto, pode ser proibida na convenção de um condomínio com destinação puramente residencial.

Ora, com todo o devido respeito que merece a tese, uma vez que proferida por julgadores de notável saber jurídico, os argumentos não podem prosperar.

A tese combate os efeitos da locação com a uma acachapante proibição de direitos constitucionais adquiridos, como dito alhures.

Não é porque há alta rotatividade ou em razão de um inquilino extrapolar os seus direitos de possuidor – talvez por fazer barulhos excessivos – que devemos simplesmente extirpar o instituto da locação para temporada dos condomínios e juntamente com ele o direito de obter rendimentos do imóvel.

É digno de nota que muitos locatários regulares (aqueles de contratos de 12 meses ou mais), muitas vezes se transformam em possuidores antissociais dentro do condomínio e as únicas sanções permitidas pela Lei são multas que podem variar de 5 a 10 vezes o valor da taxa condominial. Lado outro, a maioria dos locatários por temporada são inquilinos que cumprem com os seus deveres e, na maioria das vezes, passam totalmente despercebidos enquanto residem no local.

Conclusão 

Não se afigura razoável, diante de todo o acima, apenar todos os condôminos, retirando deles o direito de ‘fruir’ dos seus imóveis, em razão de problemas isolados e que podem facilmente ser combatidos no Regimento Interno de cada condomínio.

Aliás, este é, indubitavelmente, o meio correto para se resolver todas as questões de regras de comportamento e de uso de áreas comuns de um condomínio, sem que o

judiciário imponha pesados fardos à maioria dos condôminos que cuidam bem dos seus direitos e deveres.

Márcio Spimpolo: Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito e Gestão Condominial da FAAP/SP, Vice-Presidente da ANACON (Associação Nacional da Advocacia Condominial)

Instagram: @marcio_spimpolo

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